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O TABU DO ÁLCOOL

Artigo:

O Tabu do Álcool


AUTORA: Fernanda Pernitza | ANO: 2019

Fonte: Site Guia da Cerveja


Imagem por Mediaphotos / IStock



Não é qualquer substância tóxica que é considerada ilícita e isso é muito curioso, senão inquietante. O conceito de “droga” é amplo e se estende a qualquer substância que provoque alterações no sistema nervoso (mente) e no restante do corpo humano. Sendo assim, podemos considerar o tabaco, álcool, açúcar, café, chás e remédios como drogas? Sim.


Fuma?

Toma cerveja?

Toma muito café?

É da galera dos chazinhos de ervas?

Faz uso de psicotrópicos pra dormir, relaxar, transar, pensar, comer, deixar de comer ou produzir?


Desculpa acabar com algum sonho de pureza seu, mas se respondeu sim a alguma destas questões, você e eu estamos todos fazendo uso de entorpecentes. Não é porque tais substâncias são lícitas que são inofensivas, não é mesmo?


O álcool suscita, desde tempos remotos, muito fascínio, mas também muita censura e condenação. Por que? É certo que há veracidade no que diz respeito aos efeitos nefastos do uso abusivo desta e de

quaisquer substâncias (até mesmo de quaisquer atitudes destrutivas), mas acredito que mais nocivo ainda seja a falta de informação a respeito do que leva muitas pessoas a fazer uso abusivo do álcool que, assim como algumas outras drogas pontuais, é visto como um grande vilão da saúde e também da moral dos seres humanos (psicoativos, por exemplo, não são demonizados). Há fundamento na abordagem biologicista? É claro. Mas ela está longe de esgotar o assunto.


Na história da humanidade, o álcool esteve fortemente presente e exerceu um papel importante na constituição e regulação de cada cultura e sociedade. Para os povos antigos, como sumérios e babilônicos, o álcool era uma substância sagrada e dotada de misticismo, associada a deuses e até à feitiçaria. Ou seja, não dava para dizer para essa turma que álcool faz mal e deve ser banido, pois para eles o álcool tinha um significado muito mais profundo.


Arqueólogos descobriram recentemente, em Göbekli Tepe (Turquia), cujo templo é considerado o mais antigo do planeta, recipientes gigantes de pedra fabricados há mais de 10 mil anos e neles encontraram vestígios de oxalato de cálcio, normalmente produzido durante a imersão, maceração e fermentação dos grãos para a fabricação de cerveja. Era um local de encontros ritualísticos e festividades, onde comiam e tomavam cerveja. A moral da pesquisa é que o “beber socialmente” desempenha um papel fundamental em nossa evolução e civilização. Não dá só pra tacar pedras no álcool e também não dava para chegar na roda dessa galera e pregar sobre os malefícios dele.


Na verdade, vários estudos evidenciam e comprovam os benefícios fisiológicos e sociais derivados diretamente do consumo responsável de álcool. Além disso, outros estudos sobre o beber socialmente mostram que aqueles que bebem com responsabilidade tendem a ser mais engajados socialmente, sentem maior bem-estar e tendem a confiar mais em outros membros de sua comunidade do que aqueles que não bebem nada. Hoje o consumo e produção do álcool não é algo proibido em grande parte do mundo, mas já foi durante a Lei Seca dos Estados Unidos, por exemplo, por longos 13 anos. O resultado? Aumento do consumo (alcoolismo), da mortalidade por conta da baixa qualidade das bebidas e da criminalidade (tráfico pesado, formação de gangues e quadrilhas e violência usada por ativistas da repressão). Por isso, o tabu do álcool precisa ser discutido – tabus tendem a produzir generalizações que só atrapalham o acesso a informações realmente válidas. Proibição e ataque, como a história já provou, costumam gerar ignorância, pavor e, consequentemente, uma curiosidade perigosa e despreparada.


Ok. Mas é inegável que o álcool é uma das substâncias entorpecentes que mais mata e quebra-se um tabu muito grande quando se diz que nem todos possuem tendência ao abuso e tampouco à dependência. Por certo, é preciso que fatores de risco ajam em conjunto para que alguém se torne alcoolista. Em suma, há indícios que confirmam a hipótese de que a vulnerabilidade genética e o sofrimento psicológico são fatores de risco para o alcoolismo e que a vulnerabilidade genética está relacionada com o gênero sexual, o estresse psicológico e a idade. Segundo a psicanálise, o álcool possui o poder de transportar o indivíduo a uma situação de prazer ilimitada. O que se busca ao beber em demasia é uma situação de plenitude onde nada falta. O alcoolista encontra no álcool a química que o distrai de suas faltas e a substância se torna para ele um gozo eterno, enquanto durar o efeito da droga, claro. Este gozo sem limite pode ir até os meandros da morte e muitos são fatalmente capazes disso em nome do seu desejo de gozo eterno.


A conclusão é que, pelo visto, exigir que o ser humano viva uma vida plenamente sóbria é uma pífia

odisseia. A própria mente seria capaz de produzir seus meios para “fugir” da crueza da realidade. Felizmente, essa promessa de completude e gozo eternos não seduz a todos como um canto de sereia nem de boto cor-de-rosa. Há, sim, muitas pessoas que aprenderam, de formas variadas, a conviver amigavelmente com seus vazios, limitações e consciência de sua finitude e incompletude. Ou seja, muitos bebem e, por mais prazer que sintam, conseguem sem sofrimentos homéricos interromper o ritual e fazer qualquer outra coisa. Muitos conseguem sentir tanto prazer quanto ou até mais em outras atividades e, ainda assim, tomar um gole e outro. Você consegue beber álcool e não ser bebido por ele? Tarefa difícil para alguns, para outros, natural. O autoconhecimento pode ser mais eficiente do que a censura.


E as cervejas artesanais?


Na cultura das artesanais é uma grande satisfação perceber que nos últimos anos temos nos deparado, cada vez mais, com um novo perfil de consumidor de cervejas: mais minucioso, crítico e interessado nos processos de fabricação e não em simplesmente mandar o álcool goela abaixo. Esse novo conceito de consumo repudia a cerveja extremamente gelada, bebe em menor quantidade e preza mais a qualidade do que os litros ingeridos. É capaz de pagar R$ 40 numa Brut IPA ao invés de R$ 35 em 18 latas de Skol.


Com isso, poderíamos dizer que as condições socioeconômicas de cada grupo podem influenciar o seu perfil de consumo? Creio que sim. 81% dos consumidores das artesanais tomam cervejas semanalmente, mas em pequenas quantidades e de forma consciente, com foco na apreciação. Muitos, ainda, consomem como forma de estudar e aprender sobre as cervejas, sem contar no aumento do número de pessoas interessadas em harmonizar cervejas com comidas – e isso contribui para o consumo responsável. Eu pelo menos nunca vi alguém querendo tomar cinco ou mais garrafas inteiras de cervejas durante a apreciação de um menu gastronômico. Parece-me que pessoas com melhores condições socioeconômicas, mais informadas e que bebem por questões sensoriais e não só ritualísticas, sociais ou psiquiátricas, possuem mais chances de alcançar o equilíbrio.


É o álcool o grande vilão ou a infinidade de mazelas que o ser humano enfrenta? Não sei. Mas acredito que, neste caso, ser bem informado não diz respeito somente ao universo das cervejas e de como produzi-las, mas também ao universo interior de cada um de nós, ou seja, do funcionamento e das reações de seu próprio corpo/mente; das reais necessidades que se busca suprir através do uso do álcool, assim como o que o estimula, além do álcool. No meu caso: livros e escrever – com um copo de cerveja boa nas mãos, então…


Bom, e que vença a prerrogativa do beba menos, beba melhor.


Um brinde à liberdade, ao respeito e aos direitos conquistados! Saúde!



* Fernanda Pernitza é psicóloga, fundadora/sócia-proprietária da Maria Bravura Cervejas Especiais e beer sommelier.

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